domingo, outubro 16, 2005

conheço palavras perigosas

Depois de um breve período de ausência, um silêncio branco bastante conveniente para tal página, volto a publicar um texto que me agrada bastante - uma tentativa de reflexão sobre o ato de comunicar-se. Usei-o nesta sexta-feira última numa performance no IPHAN, como narrativa na peça "Palavra-máscara", de Valério Fiel, o que revelou-se um grande momento, quem esteve lá pode comprovar... De todo modo, eis o texto para os transeuntes da página branca: um punhado de rosas ao solo.

conheço palavras perigosas
como rosas abandonadas no chão.
estiro-as sem pudor sobre a página casta,
sabendo o que basta para dizer então:
silêncio, caríssimo!
oh, não perturbes o poema com teu argüir inútil!...
aguarda, ignoto de teu destino
o sino veemente das horas minúsculas, informes,
de que são feitas as palavras tornadas poesia –
sua efígie amoral, sua afasia e demência.

ouve o sinal e aceita sua sina
qual herança ou violência.
toma do poema apenas o severo
esquema do espelho mágico
e ao perguntares sobre ti mesmo,
trágico ou patético, ouvirás
da superfície clara do simulacro
o mimético silêncio,
ardente como o sol do meio dia...
e verás que o espelho não é teu;
és tu, tal e qual, reflexa epifania.
é-se sempre o avesso do próprio eu:
a substância feita do que pensam de ti
e das idéias que tens a teu respeito.

eis o leito seco da areia das palavras
perigosas porque rasas e movediças
aparentemente submissas, escravas
da tua mão ou da tua boca...
em verdade moucas, parvas e omissas
pretensas à autônoma eloqüência,
à barbárie e à inconseqüência castiça!

...

repara o fogo oculto no corpo da palavra.
por vezes somente a surda fagulha das línguas mortas,
a primitiva clava do verbo fendendo o gutural e pálido signo.
deixa que esse fogo seja, de fato, o ígneo feto de tua fala,
singular e claro objeto que, aos solavancos, resvala
no féretro lento que te serve de discurso.
deixa que o sopro deste movimento dê curso
ao incêndio, e cinge tua língua na fuligem
da retórica & da lógica carbonizadas!
deixa assim que, ao perigo do que está prestes a ser dito,
junte-se o desejo contrito de não dizer nada.

deixa, enfim, ao teu aflito interlocutor
o labor e o risco de compreender
ou teu silêncio, ou tuas palavras.

3 comentários:

Anônimo disse...

...e de palavras, tudo se constrói.

Um abraço

Tere

Anônimo disse...

Tento agora uma terapia de olhos soltos no solo em que deixastes expostas palavras em perigo,
Todas instalaram-se agora,
em circustâncias auto-impostas,
como tantas outras.
Estão inquietas, lânguidas
mal sabem onde ir,
desconfio agora de reticências.

Anônimo disse...

Viu? eu avôo, sempre e sempre, mas não canto porque tua melodia me cala o peito.
é isso.

beijo-te

Paula Cury

Quem sou eu

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Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.