quinta-feira, dezembro 30, 2010

Canção

teu desejo abre os braços e morre
e a fome do mundo resgata
o que dia após dia te ocorre
reluzindo num punhal de prata

essa capa indecente te tolhe
e teu sonho abafado se inquieta
e projeta-se ao longo da prole
essa febre da carne poeta

e o pior: não há um lugar que te esconda
porque tudo em ti é uma afronta
é melhor te dizeres depressa
ou senão, perdes tua cabeça.

paga o preço do que te socorre,
essas noites que passas em claro
esculpindo sintaxes num porre
transbordando de teu dicionário

cada brasa que sopras te chama
e na cama não há mais descanso
o teu nome é uma pedra na grama
onde erras teu próximo passo

por menor que seja, o risco te abraça
os abutres roem tua carcaça
e o maior dos teus medos te mede:
não há água que mate a tua sede.

(ilusão é um sangue que escorre
coração, um segredo que sorri
um segundo é um século que encolhe
a canção é o silêncio que explode).

sábado, novembro 06, 2010

com um único verso que me valha

é quando então enfrento o mundo
além do muro da visão
é quando então me solto, arrisco
revelado pela dor

e invoco uma divindade dúbia,
um teor vívido, remotamente eu mesmo
com um único verso que me valha,
às custas de esquartejar-me
e expor despojos nas praças do centro
com os gemidos dos antros, os porões
carpideiros a doerem-me aos ouvidos.

é aí que o desconhecido vem sentar-se
à minha mesa, e toma-me as mãos,
beija-me as faces rubras de vinho,
e conta-me, compassivo, todos os
nomes que já tive, e quais os rostos
verdadeiros de meus detratores.

é quando meus suores ora frios tornam-se
calda fervente, e que a fúria asceta
embaça-me os olhos, e eu tremo, porque
tenho os membros atrofiados, e o
combate estoira-me por dentro dos
canos venosos, pelos átrios do pâncreas,
através da envergadura dos fêmures
e das omoplatas eriçadas num arrepio de voo.

é quando então sou o que seria, vendo
pelo vão agudo, além de toda cegueira
e a clareira objeta certezas.

é quando a presa escolhe como quer
morrer, para viver adiante,
enquanto a mínima palavra abre-se,
anímica, livre de querer dizer.

quinta-feira, setembro 30, 2010

Maria do Grão*

há outros vestígios onde habito
rescaldos da aurora, um murmúrio
o repositório de conquistas aniquiladas
espargidas ao vento litorâneo.

a cidade se deixa recortar
por correntezas infeccionadas.
há grandes árvores cuja história
morrerá com elas, ressequida.

à gleba noturna voejam fantasmas
o ouro sereno de inexistências persiste
a vastidão do rio empresta-me silêncio.

enquanto há cansaço e calor -
uma breve canção me ocorre
ouço seu grito leve, em sonho,
e cada lenho crepita onde habito.

...

há vários presságios enquanto luto
e o último alqueire queima, vencido
à glória anônima de haver sido

a velha planície, o vento terral
a lua no charco, umbral mouro
deslizando lento no choro, a brisa
enfunando cores em papel de seda

e a cada segredo que o tempo sossega
excedo em suores bravios, inquieto
minha própria armadilha de versos

e objeto incertezas, anulo os
maldizeres apenas por ser
o lento vagido de tudo o que quer
suspira e evola-se em nuvem chuvosa
irmã vagarosa do entardecer.

*título referente a expressão Santa Maria do Grão, usada por Vicente Cecim em Viagem a Andara

quinta-feira, setembro 02, 2010

A Verdade

é, meu amigo: respira fundo
porque o mundo não é raso
e faz pouco caso do que te incomoda.

decide teu lugar à roda dos fatos
e vê que os ratos da ilusão
hão de roer-te os calcanhares

hão de faltar-te os ares logo
que o jogo dobrar a curva decisiva.

é, meu amigo, sua tua camisa
que os dias não são quentes à toa
se tens a metade da broa, não te acomoda

que a poda fortalece os galhos

lambe teus lanhos, busca o que te falta
e vê que a malta detratora não descansa
antes marca a dança, o passo rude
e, amiúde, vem à baila a verdade.

quarta-feira, agosto 18, 2010

a escritura

uma vez mais compreendes o que te cerca:
a conversa escura e multitudinária
os olhares ubíquos das rapinas.

repetes coitos e mantras na surdez esfacelada
enquanto nada mais é tão nítido.

tens a agonia súbita das retinas,
a recusa orgulhosa do pão doado
e a teu lado, a qualquer hora,
ardem querências ansiosas.

forjas o brilho das rosas descritas
e o verbete inédito segue intocado.

buscas calado o que te ousa doer,
e a farpa dourada adorna-te a garganta.

...

uma vez mais agiganta-se o sentido:
acrílico, zinco, a curvatura vistosa
do próximo crepúsculo

a musculatura da infância, irresistível e elástica,
a medida lúdica do exercício mortal, a escritura

(essa inversa procura do que sabemos inexistir
e acerca do que terminamos por auscultar,
mímicos, nas palavras que nos concorrem
emersas d'um leito invisível).

quinta-feira, julho 22, 2010

Improviso

deixar pra trás o que não soube
e o que me coube acabe aqui
no abraço, recobrar

o abrigo, o último motivo
do que não tive que enfrentar
a ventania do impossível
respirar

bem pra lá, depois da espera
o trem deserto, ninguém
por perto, aperta o passo
deixa o que passar

sem parar, arrisca
o teu menor esforço
e ali, no dorso do improviso
vai, sem avisar

deixar quieto o que não houve
e o que se move, enovelar
na memória, no olhar

ouvir a loa da verdade
e a vontade enviesar
nas direções que cada instante
avistar

sábado, maio 22, 2010

Eternos


tomar tuas mãos seria como
invadir obtusas estrelas
e vê-las como realmente são:
o quinhão emérito do infinito
que anelas, e a centelha escondida
entre as ruínas do que fomos.

arde no ar o fumo carburado
daquela viagem,
o negrume dos meus olhos ainda moços
com a tua verdura intransigente
e ouvem-se estridentes campanários
à passagem da caravana

nosso humor, colorido entre gozos e medos,
até que desandem as tardes para o que queiramos,
as direções delicadas de tudo o que hoje somos
inscrita na rosa aflatida das vontades.

tomar-te as asas e a sede
na noturna imprecisão dos sonhos
seria como o abandono natural
de estradas silenciosas
onde nossos passos semearam
pedras, galhos, insetos mínimos

e o ânimo da terra bebeu toda a tempestade -
a cidade transluzente dos teus dentes
e lábios mornos pronuncia uma vez mais
meu nome secreto

(e um certo invento rubro vai de novo
adornar-nos o peito úmido
afogar-nos o leito âmago
a imaginar-nos eternos).

sexta-feira, abril 23, 2010

Soledade

no Soledade, os mortos cuidam
de seus mortos. despojos esparsos
aqui e acolá

tristíssimas indagações pairam
nas volutas enferrujadas dos gradis
e tudo o que se quis perde-se
na desesperança do cemitério,
sem sequer ser preciso adentrá-lo.
nenhum mistério anunciado ao portal,
nenhum halo para haurir seus umbrais coxos.

apenas o muxoxo em ruínas
da cidade, do entorno
sem saudade -

(o Soledade aguarda, morno, o estorno
inexorável da vida que se evadirá,
cedo ou tarde).

quarta-feira, abril 14, 2010

Sim

pra entender a luz do dia

uso toda cor, todo retalho

pra corrigir as malfeituras

suco de maçã, abraçar de manhã


abrir os olhos serve pra

firmar o coração, mirar o fundo

se for pra revirar o mundo,

mudo a direção


sou o ouro e a brisa

o estandarte, o vinho

canto pelo caminho

pra viver só é preciso nunca dizer não


pra libertar a maresia

vale rodopiar, tontear os olhos

pra desvendar a tua procura

lembra o que sonhou, conhece a tua dor

idéias novas são pra

clarear a indecisão, cegar o rumo

ter o futuro novamente inteiro em tuas mãos


seja o ouro e a brisa

o estandarte, o vinho

canta pelo caminho

pra viver só é preciso nunca dizer não


deixar levar

abrir-se o tempo

não ser senão

por um momento.

quinta-feira, março 04, 2010

Inícios

Recolhe nas unhas o esmero do cio
o vazio dos lençois quarados na memória.
vê a tua negra vegetação tornar-se úmida e âmbar
com o canto de um galo.

Sente o estalo do sonho,
prenhe além das bordas,
e acorda para dentro da tua fabulação:
entende a paisagem nunca antes inventada

Objeta o n
ada com tua inesperada resposta,
feita de uma outra substância: a nova inteligência.
dá aos outros esta ciência feito óbolo e hóstia
concorra para que o fragor não ranja
além do óbvio.

Sê, para os inícios, a vontade legítima.

Quem sou eu

Minha foto
Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.