quinta-feira, dezembro 10, 2009

a página branca II

estendo as mãos sob o manto morno
do dia: intento sem ruído.
as árvores aguardam, mudas,
o carvão no hálito dos automóveis.

sem tempo, tenho os cabelos úmidos
como os de um recém-nascido,
e recendo um júbilo amniótico,
curvado sobre o pequeno caderno,
como o firmamento afaga as
indecisões deste mundo.

a página abraça-me os olhos,
compreensiva, e sem anseios.
sinto sua respiração ao recostar
a cabeça em seu regaço.

é quando ouço gorjear, do ínfimo
a primeira palavra.

quinta-feira, outubro 15, 2009

vida

(7.novembro.2008)


a vida é maior que a tua dor

e cabe na flor, nos arredores

do teu sentir. e no porvir

amanhecerá o sal, o cio original,

a cal da natureza na incerteza do real.


a vida é melhor que o teu querer

e sabe o sabor das entregas surpreendentes,

a infância preservada nos intentos,

a força dos inventos imbuídos de milagre,

como a lágrima iminente, o ventre reconvexo,

o plexo solar, e o suspiro da aurora.


a vida é muito mais do que agora,

onde esboças teu receio – é um veio

rodeado de águas idas e vindouras,

e mora no útero mínimo das horas

dilatadas quando oras o evangelho

de simplesmente seres, não importando

que esperes por provável paraíso.

a vida é este relógio impreciso,

o franco improviso que continuará.


...


(15.outubro.2009)


a vida vai além do teu penar

e corre ao largo do que pensas

como se estivesse parada – é a

enseada fluídica, a hidrografia

escarlate que carregas, secreta,

e que, inquieta, refaz constante

os seus percalços no leito

de um mesmo rio.


a vida é este incerto pavio a queimar

cujo comprimento desconheces, mas

que te conduzirá, fatal, à explosão

de existires inteiro, ao fim da ilusão.


a vida é o reverso do não que pronuncias

na redoma que te contraria o desejo

e ora no silêncio do beijo, mora no

rijo intuito de expandir-se, mira-se

na certeza do milagre que esperas.

não retém ou exagera, antes gera

mais de si mesma, exige pulsações,

fluxos vibráteis, presenças plenas.


a vida nunca é pequena quando

a alma olvida, e convida-nos a

ocupar-lhes os aposentos a seu tempo.

a vida é um invento lento, um novelo

feito de momentos a se desvelar.



terça-feira, agosto 04, 2009

Fortuna

Então, cubra de delicadeza esse corpo já deitado em palavra,

e com a lisura vagarosa do tempo, ouça o trote longínquo,

a moçada gritando aos bardos, aos bandos,

naquela clareira, em estrépitos de argúcia;

as fogueiras sempre foram feitas de gente,

e toda a gente sempre correu fora da luz.


por onde andares, levarás contigo a clava diáfana,

e por onde falares, deixarás comigo a tua armada, armadilha feita de sopro:

a concha de tuas mãos, o rescaldo da inércia, o vinho que envelhece subterrâneo.

e quando voltares, isso será o vazio, uma casa à espera do corpo,

da palavra, e de tudo o que se escondeu diante da terra.

será como a visita de um sonho, essa porta que se abrirá, silenciosa, na madrugada

e a mãe, sentada ao lado da cama do filho.


portanto, dobra desde já esse teu manto feito de escolhas,

e te aproxima da antiga morada -

é na distância que crestam luzes,

e o tempo se cobre de sombra e sol.

deixa as sobras aos que padecem sob tua mesa

enquanto comes, delicadamente, a fortuna dos dias de sorte.


escrito a quatro mãos com Daiane Gasparetto, 4.ago.2009, msn, 13:45.

sexta-feira, julho 24, 2009

matinais


das artimanhas que conheço,
nenhuma que meça o desperdício das manhãs
nada que indique o endereço absconso do sol
ou de seu conselho:
o solto evangelho dos hipogrifos,
os centauros de ébano, a ceia dos unicórnios,
a vazante que revela as ondinas sem rumo.


o anúncio pálido goteja no frio, sem audiência.
os olhos tornam-se gládios ocos,
sem vestígio de milagre.
o orvalho ordenha-se indeciso
entre jóia e lágrima,
e há mais do que se pode contar
dos mistérios nos arbustos.


a muito custo consigo ordenar este relato,
um trato enviesado entre o horizonte,
e a linha vertical de tudo o que cai,
de todas as coisas que movem-se imperceptivelmente,
como entes hauridos de intermediação.


dos ondes em que anoiteço
nada que enderece ao longínquo hiato da aurora,
estas horas fustigadas de origem e âmbar,
havidas no incriado mundo que dorme ainda,
vergasta inclinado ao silício oculto
do dia recente, cujo choro primeiro
ninguém ouviu.


*poema provocado pelo tema "matinais", de Valério Fiel da Costa

Quem sou eu

Minha foto
Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.