quinta-feira, dezembro 04, 2014

Universário


para Cláudia Torres
cansado de entreter-se
em calendários
resolveu celebrar
universários

para tanto
reuniu entretantos
ao erário tonto da rotina
iluminando a lâmina
diamantina
d’um dia qualquer
com o fogo de acolher
seus nascituros

os astros obscuros
pelo espaço enfim notaram
que às curvas de seu mapa
enviesaram as casas,
e a cabeça do dragão
a meio do céu
cuspiu labaredas

o corcel das veredas
apeou seu galope
e a golpes de mote
escreveu sua sorte
nas frinchas, nas brechas,
onde a morte empresta cor
aos que vivem sem temor.

quarta-feira, novembro 05, 2014

O Ódio

à memória urgente do massacre guamaense

dizem que o ódio é um bicho morto-vivo
primitivo, vem das lendas borgianas
recolhidas entre uma e outra pálpebra
depauperada das canalhas insones


dizem que o ódio é sem nome, mas sempre
assume vestes e corpos de homem,
enverga mosquete, clarim, alforje, seta e besta
e se infesta silenciosamente pelos
roncos da sesta do bairro suburbano


dizem que o ódio é uma invenção dos humanos
que por sua vez, dizem nada ter a ver com ele
sua pele viscosa tem, por vezes, a libido e a bile
misturadas como numa saliva babada incontinente


dizem que o ódio é demente, e nem sente
sua própria existência, é como uma carência
que mente, enquanto tenta provar inocência
põe a forca em pescoços infantes, e deseja
o quanto antes, que seja coroada sua ânsia
por vingança, por preguiça, por ciência.


quinta-feira, julho 10, 2014

O medo (ao espelho)


  tenho medo de mim mesmo
de mostrar-se o meu segredo
  de meu dedo apontando-me
o degredo que não cedo

  desse deus medido a ego
de me doer desapego

  se me pego andando a esmo
tenho medo do que cismo
  desse abismo do que medro
e do cedro em que espasmo

  tenho medo dos miasmas
dos fantasmas que não vejo
  não invejo a rouca asma
que se esconde em meu desejo

  tenho medo de mim, próprio
ao colóquio desse espelho
  tenho em mim o temor velho
o entulho ardendo, o ópio
  da paúra que arruina

(tenho medo, eis mi'a sina)

a assassina covardia 
  preme os olhos, assustada:
nada vê além da queda
  em si mesma, assoberbada

tenho do medo a ferida
  desd'a origem abobadada
domínio algum da vida –  
  essa égua desabrida
essa mula decapitada

  tenho medo de ser nada
este um que me suponho
  meu pensamento medonho
é o desenredo tamanho
  cujo lanho vaza o sonho
envenena o próprio punho
  rebenta o grito de estanho
corroído desde o sumo

(tenho medo desse estranho).

quinta-feira, abril 03, 2014

Canção imaginada


a palavra é só
no silêncio, escolhe a cor

a palavra dita
não evita o corte, a flor

permanece o som 
do que mira no deserto
chega ao coração 
a canção que imaginei 
sem saber

bem mais perto
cobre a solidão
do mais secreto mundo que houver

ouve, atento, por dentro 
o que não diz
palavra e vento
feito lava a arder


a palavra é sal
a saudade é seu pudor

a palavra grita
interdita a morte, a dor

amanhece o pó do que vira
louca em sonho
sangra o coração 
a canção que imaginei 
sem saber.

terça-feira, fevereiro 18, 2014

três meninos


não deixo de ver a mim mesmo
no rosto tenso do garoto
que me assalta.

    não lhe falta a tez robusta
que a juventude lhe empresta
    mas de mim toma, rude, à custa
de esbravejar, de brandir a arma de fogo
    sob o jugo de um malogro
em que eu caio,
e minha amiga, desesperada.

sai, exasperada, à luz fria do meio-dia
    aquela cenografia cínica do assalto
à mão armada - e eram três, repetidos
    sob o aplique lerdo da tarja preta
três meninos sujos pelo esperma do capeta
    ou que apertam a arma que a governança
comenta, entre os comes e bebes da província.

    não deixo de ver a mim, à minúcia
de ser eu mesmo vítima e a iminência criminosa
    já que a rosa do povo jaz, soturna
à viva-voz, em plena esquina diurna
    depauperada aos chorumes da vala mal cheirosa.

Quem sou eu

Minha foto
Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.