domingo, fevereiro 12, 2012

Areia




(1993)



A menina sorriu, retorcendo os olhos. Caminhou sobre os cacos de vidro, a pensar no topo dos edifícios imensos.
Viu o céu se movendo sem pressa, no compasso das nuvens & do vento. Alguns grãos de areia caíram nos seus olhos e na boca, e ela mastigou-os, sentindo a vertigem no horizonte trêmulo & flamejante. 
E não ouvia mais os abutres gargalhando concentricamente ao redor de sua cabeça, como uma auréola negra coroando um anjo das trevas.
Fechava os olhos, vagueando com os grãos na retina, num sonho arenoso e sem fantasmas, quando caiu numa espécie de oásis imaginário, tendo orgasmos pueris nas asas dos deuses de brinquedo.

(2012)


A menina perdeu o medo. Diante do abismo circundante, ela pensa que, como antes, os edifícios nunca arranham o céu realmente.


Viu o chão sem mover-se, sem pressa, atravessando as miragens & ausências. Alguns grãos de areia feriram-lhe os olhos e a boca, e

 ela aceitou-os, seguindo as direções apontadas no horizonte cego & radiante. 
E não houve a mágoa de rapina, ou o escárnio predador, nem armadilha dúbia que a coroasse com os espinhos revoltosos da complacência

 de si mesma.
Abria os olhos, vagas lacrimosas lutavam na tempestade, na vigília assombrosa e sem fantasmas, quando se ergueu numa espécie de ária 

imaginada, tendo orgasmos sutis nos braços de ouro do desejo.

6 comentários:

Tere Tavares disse...

A menina cresceu deixando pegadas na areia. Como certo alguém. Beijo

Lígia Saavedra disse...

Deixei-me levar por sua verve, Renato e pude entrar nos sonhos dessa menina que deixou pegadas em minha memória.

Lindo! Parabéns, querido!

Unknown disse...

(2014)

Abismo de concreto: arranha-céus.
Nuvens vagarosas lágrimas.
A passos lentos, feria o chão, que lhe cuspia fuligens.

Renato Torres disse...

Tere,

essa menina, que atravessa décadas entre os dois textos, é de fato bem próxima de ser a própria poesia. ando vendo que talvez ela simbolize a minha escrita, através dos anos... e é bem capaz de, súbito, ela sair sozinha, pelo mundo.

beijos,

r

Renato Torres disse...

Ligia,

feliz sempre por te deixares levar pelo que escrevo... você é uma leitora especial!

beijos,

r

Renato Torres disse...

F. Silva,

bonito o seu texto provocado. prefiro, de fato, este tipo de provocação, bem mais...!

abraços,

r

Quem sou eu

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Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.