sexta-feira, abril 23, 2010

Soledade

no Soledade, os mortos cuidam
de seus mortos. despojos esparsos
aqui e acolá

tristíssimas indagações pairam
nas volutas enferrujadas dos gradis
e tudo o que se quis perde-se
na desesperança do cemitério,
sem sequer ser preciso adentrá-lo.
nenhum mistério anunciado ao portal,
nenhum halo para haurir seus umbrais coxos.

apenas o muxoxo em ruínas
da cidade, do entorno
sem saudade -

(o Soledade aguarda, morno, o estorno
inexorável da vida que se evadirá,
cedo ou tarde).

16 comentários:

Ana Guimarães disse...

O Mistério maior não precisa de anúncio no portal do cemitério. Aliás, não precisa nem de portal nem de cemitério, pode ser vislumbrado até na mais bela paisagem. É que lá, no leito comum dos mortos, ele reverbera.
Abraços, Renato. Parabéns pelo poema.

edson coelho disse...

"nenhum halo para haurir seus umbrais coxos": eis o mistério da vida: sem mistério, irreversível, fatal. se o soledade tivesse o mínimo de consideração, acordaria depois desse. parabéns mais uma vez a você.

Tere Tavares disse...

Nada mais abandonado que uma cidade "final", repleta de humílimas frequências- as mais surdas e absurdas- mas com fragores.

Beijo e aplausos!

Larissa Medeiros disse...

Caminhei agora pela Gentil e virei a esquina na Serzedelo, e senti mais uma vez um sopro estranho e uma imponência cinza e misteriosa que me deixava curiosa a ao mesmo tempo de olhos arregalados quando criança.

Bjs,
Lari

Renato Torres disse...

Ana,

vivemos envoltos no mistério, que emerge na sudorese dos dias, na incerteza que nos apanha de surpresa quando estamos temperados pela dor, e finalmente nos atinge a inexorável finitude. sempre me alegra e orgulha a tua leitura ao que escrevo.

beijo!

r

Renato Torres disse...

Edson,

considerar o que já está morto é um dos desafios mais dialéticos, não? mas a força simbólica que o Soledade representa, esta não está morta, vibra ali, silenciosamente, no mistério inexistente, apenas aparente. sempre feliz em te receber aqui!

abraços,

r

Renato Torres disse...

Tere,

e mais abandonado ainda é o Soledade - não à toa o motivador destas palavras. há muitos retratos de abandono em Belém, mas o Soledade é, talvez, um dos mais contundentes. muito querida és, minha amiga!

beijos,

r

Renato Torres disse...

Lari,

quem conhece, como nós belenenses, a atmosfera do Cemitério da Soledade, compreende, mesmo sem saber como dizê-lo, o que são essas sensações. a nós resta, já que o patrimônio histórico nada faz por ele, restaurar sua inteireza simbólica em palavras.

um beijo,

r

VFC disse...

a "espera" Soledade, a "presença" Soledade, o passado alí, como um ser capaz de envelhecer indefinidamente preso ao seu último suspiro. As últimas visagens de Belém estão lá refugiadas. Um templo esotérico, pagão, onde, ao invés de mortos, habitam sombras, imagens, entidades, estórias fantásticas de crianças santas e escravos divinos. A enorme quantidade de velas que não param de queimar nas suas passarelas são o testemunho de uma Belém cuja curiosidade e disponibilidade para o mistério ainda não se deixou esvaziar. Mais um delicioso texto, Renato, muito obrigado por continuar sendo esta voz que és.

reginaldo viana disse...

AMIGO, ADMIRO DEMAIS SEU TRABALHO A TAL PONTO QUE TE TORNAS UMA GRANDE REFERÊNCIA PARA TODA A CLASSE

Renato Torres disse...

mano Valério,

toda esta carga esotérica e pagã, de templo e espaço urbano, presente e ausente a um só tempo, significando ruína e eternidade de um só golpe, não apenas nos intriga, mas, misteriosamente, nos resguarda diante de um mundo cada vez menos afeito ao milagre de estar vivo (como diz aquela canção do Fellini: "não é um milagre ainda estarmos vivos? é um milagre ainda estarmos vivos"). meu amigo, sempre serás, além de um grande parceiro, uma referência, e também um objeto de admiração.

abraços!

r

Renato Torres disse...

Reginaldo,

tua deferência, por certo além do meu merecimento, muito me alegra e enche de esperança de que o que venho fazendo esteja trilhando um bom caminho. seja sempre bem vindo a esta página branca!

abraços,

r

Unknown disse...

Moço, belo belo poema vivencial, vc me mostra meus sonhos e felicidades de menina, fugia do colégio nazaré só pra passear e ver fotografias e aros e arcos do soledade, bjss belo belo emocionante.Maria Eugenia Melo

Lucimara Souza disse...

Parabéns por tanta sensibilidade!
Desculpe minha ausência aqui... E obrigada pelo comentário lá em meu blog. Adorei!
Aplausos pra vc, sempre!
Lu
www.textos-e-reflexoes.blogspot.com

Renato Torres disse...

Eugenia,

a tua alegria de menina, rediviva e curiosa, adiciona novas nuances, bem mais coloridas e líricas, à aridez do que escrevi. um mistério da poesia este de ser algo sempre vivo, sempre outro, acrescido de sensações e memórias de quem lê. te agradeço o olhar entusiasmado, emocionado, de quem, generosamente, se doa ao que foi doado.

um beijo,

r

Renato Torres disse...

Lucimara,

não há necessidade de desculpas, e nem mesmo de agradeceres o que, de minha parte, foi uma retribuição. eu sim, te agradeço por retornares a esta página branca, gentilmente!

beijo,

r

Quem sou eu

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Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.