Depois de um breve período de ausência, um silêncio branco bastante conveniente para tal página, volto a publicar um texto que me agrada bastante - uma tentativa de reflexão sobre o ato de comunicar-se. Usei-o nesta sexta-feira última numa performance no IPHAN, como narrativa na peça "Palavra-máscara", de Valério Fiel, o que revelou-se um grande momento, quem esteve lá pode comprovar... De todo modo, eis o texto para os transeuntes da página branca: um punhado de rosas ao solo.
conheço palavras perigosas
como rosas abandonadas no chão.
estiro-as sem pudor sobre a página casta,
sabendo o que basta para dizer então:
silêncio, caríssimo!
oh, não perturbes o poema com teu argüir inútil!...
aguarda, ignoto de teu destino
o sino veemente das horas minúsculas, informes,
de que são feitas as palavras tornadas poesia –
sua efígie amoral, sua afasia e demência.
ouve o sinal e aceita sua sina
qual herança ou violência.
toma do poema apenas o severo
esquema do espelho mágico
e ao perguntares sobre ti mesmo,
trágico ou patético, ouvirás
da superfície clara do simulacro
o mimético silêncio,
ardente como o sol do meio dia...
e verás que o espelho não é teu;
és tu, tal e qual, reflexa epifania.
é-se sempre o avesso do próprio eu:
a substância feita do que pensam de ti
e das idéias que tens a teu respeito.
eis o leito seco da areia das palavras
perigosas porque rasas e movediças
aparentemente submissas, escravas
da tua mão ou da tua boca...
em verdade moucas, parvas e omissas
pretensas à autônoma eloqüência,
à barbárie e à inconseqüência castiça!
...
repara o fogo oculto no corpo da palavra.
por vezes somente a surda fagulha das línguas mortas,
a primitiva clava do verbo fendendo o gutural e pálido signo.
deixa que esse fogo seja, de fato, o ígneo feto de tua fala,
singular e claro objeto que, aos solavancos, resvala
no féretro lento que te serve de discurso.
deixa que o sopro deste movimento dê curso
ao incêndio, e cinge tua língua na fuligem
da retórica & da lógica carbonizadas!
deixa assim que, ao perigo do que está prestes a ser dito,
junte-se o desejo contrito de não dizer nada.
deixa, enfim, ao teu aflito interlocutor
o labor e o risco de compreender
ou teu silêncio, ou tuas palavras.
inerência da linguagem mormente na página branca: a potência da semente, a semântica do mote cotidiano, sem planos. poesia para o enfrentamento do que inexiste, mas urge. grafias caboclas e indígenas por ascendência, oriundas de uma terra feita de águas intensas. poemas registrados na Fundação Biblioteca Nacional - RJ
domingo, outubro 16, 2005
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Quem sou eu
- Renato Torres
- Belém, Pará, Brazil
- Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.
3 comentários:
...e de palavras, tudo se constrói.
Um abraço
Tere
Tento agora uma terapia de olhos soltos no solo em que deixastes expostas palavras em perigo,
Todas instalaram-se agora,
em circustâncias auto-impostas,
como tantas outras.
Estão inquietas, lânguidas
mal sabem onde ir,
desconfio agora de reticências.
Viu? eu avôo, sempre e sempre, mas não canto porque tua melodia me cala o peito.
é isso.
beijo-te
Paula Cury
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