quinta-feira, março 22, 2012

Canto que ama e ondeia



Há muito que me sinto devedor de mais escritos sobre a cidade em que vivo. Há muito que poetas e compositores dedicam obras à Santa Maria de Belém do Grão Pará, mormente exaltando suas belezas naturais, a generosidade e calor humano de seu povo, sua diversidade cultural e culinária únicas. Decerto que não pretendia chover no molhado, e já há algum tempo venho exercitando pequenos escritos sobre aspectos que me afetam desde que vivo aqui, há quase 40 anos. O presente texto, escrito para uma incrível melodia do compositor Floriano Santos, é, sem dúvida, um dos resultados que me deu mais satisfação até agora, por dar conta dessa relação de amor e ódio que temos com a cidade morena - esta mesma que é tratada como uma puta da Riachuelo, não apenas pelos seus governantes, mas muitas vezes, por nós mesmos, seus habitantes.

Canto a minha terra que se enxergará
Nessa guerra santa entre o que será 
E o que fora indício de inocência vã
Canto esse desterro da incerteza cidadã
Meu canto arde em fogueira equatorial
Dança no sonho, gira ciranda,
Tarde, encharca o vento terral.

Canto esta cidade onde cabe um grão 
Morena sangria, na planície a mão 
De um lirismo cego, nesse quarador
Seca sem juízo o lençol sujo desse amor
Os humores da terra, inverno fatal
Baque no peito, pisa na areia
Ergue a saia, sua, serpenteia.

Entre na roda, baila morena
Faz do corpo um vendaval
Pula no fogo, joga os cabelos
Faz dos pelos teu punhal
Me faz querer dessa maneira o teu cheiro,
Tuas ruas, praias nuas, tuas pernas a me desandar

Entre na valsa, ousa num salto
Fala alto o que quiser
Molha a cidade, vaza no rio
Vela, círio, cio, mulher
Me faz morrer no cais da beira, numa feira
Na ribanceira, descendo a ladeira, a noite inteira a febre
Pula a baia, voa, cambaleia.

Canto a minha aldeia, a fazenda, a vau
A vergonha, a lenda, esgoto e canal
Canto que se ondeia, fúria do perau
O subúrbio sonha a ilusão do litoral
Maria, terra e fêmea, flor do grão, fará 
Desse meu canto um novo encontro
Onde a minha voz te incendeia.

Quem sou eu

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Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.