Há muito que me sinto devedor de mais escritos sobre a cidade em que vivo. Há muito que poetas e compositores dedicam obras à Santa Maria de Belém do Grão Pará, mormente exaltando suas belezas naturais, a generosidade e calor humano de seu povo, sua diversidade cultural e culinária únicas. Decerto que não pretendia chover no molhado, e já há algum tempo venho exercitando pequenos escritos sobre aspectos que me afetam desde que vivo aqui, há quase 40 anos. O presente texto, escrito para uma incrível melodia do compositor Floriano Santos, é, sem dúvida, um dos resultados que me deu mais satisfação até agora, por dar conta dessa relação de amor e ódio que temos com a cidade morena - esta mesma que é tratada como uma puta da Riachuelo, não apenas pelos seus governantes, mas muitas vezes, por nós mesmos, seus habitantes.
Canto a
minha terra que se enxergará
Nessa
guerra santa entre o que será
E o que
fora indício de inocência vã
Canto esse
desterro da incerteza cidadã
Meu canto
arde em fogueira equatorial
Dança no
sonho, gira ciranda,
Tarde, encharca
o vento terral.
Canto esta
cidade onde cabe um grão
Morena
sangria, na planície a mão
De um
lirismo cego, nesse quarador
Seca sem
juízo o lençol sujo desse amor
Os humores
da terra, inverno fatal
Baque no
peito, pisa na areia
Ergue a
saia, sua, serpenteia.
Entre na
roda, baila morena
Faz do
corpo um vendaval
Pula no
fogo, joga os cabelos
Faz dos pelos
teu punhal
Me faz
querer dessa maneira o teu cheiro,
Tuas ruas,
praias nuas, tuas pernas a me desandar
Entre na
valsa, ousa num salto
Fala alto
o que quiser
Molha a
cidade, vaza no rio
Vela, círio,
cio, mulher
Me faz
morrer no cais da beira, numa feira
Na
ribanceira, descendo a ladeira, a noite inteira a febre
Pula a
baia, voa, cambaleia.
Canto a
minha aldeia, a fazenda, a vau
A
vergonha, a lenda, esgoto e canal
Canto que
se ondeia, fúria do perau
O subúrbio
sonha a ilusão do litoral
Maria,
terra e fêmea, flor do grão, fará
Desse meu
canto um novo encontro
Onde a
minha voz te incendeia.