domingo, maio 14, 2006

minha mãe

minha mãe vem de linhagens elementais, e traz
junto ao ventre inúmeras certezas férteis,
prontas a encontrar qualquer pequena existência
e saber-lhe as origens, abrigando-lhes desde o nome.

acerca de mim ergueu paredes líquidas e sentimentais,
horizontes onde vi a beira íngreme do mundo,
tonta a precipitar-se, sob a velocidade da lágrima.
minha mãe esquece-se entre os nomes queridos,
florindo em murmurados risos, saltando uns sobre
os outros, em cômica algaravia. minha mãe sabia
desde o início que haveria de ser assim, para mim
e para meus irmãos – um caminho são aferrado a
escolhas verdadeiras, um tecido vivo, ornado à mão.

assim ensina autêntica, incontinente em sincera realeza,
sangra a vinha de minha mãe incessantemente,
adoçando-nos as bocas sempre sedentas de si,
úmidas então com sua ciência doadora, dourada irmã,
armadura vegetal orlada por suas pequenas filhas,
as plantas com quem conversa em íntimo dialeto.

minha mãe conhece o secreto cálice da vida adiante,
dedicando-se à plenitude feminina de ser em muitas,
outras meninas a tremular, regadas ao sol da manhã,
sob orvalhos gotejados de sua mão, céu a chover.
minha mãe me viu nascer antes da chegada, e quis,
mesmo sem querer, enluarada sobre o mundo a crestar,
que ali fosse o meu lugar, o chão donde cresceria nato
e recoberto de sua branda morada, seu morno tato.

terça-feira, maio 02, 2006

rei nato

nasci numa tarde clara de terça-feira,
na pedra rara da água mansa.
nasci somente a ver navios, a ter baldios
terrenos vazios como reino, meu cetro
era um galho de abacateiro, meu cheiro
um quintal vivo de terra desnuda.

eu era uma muda estranha no ventre
da mãe, tão terrestre quanto eu; um vento
abobadando o abdômen daquela mulher pequena.
eu era a pena, eu era o homem, eu era insone,
eu era o sonho imprevisto, o incesto pueril,
eu era o pavio curto de uma secreta explosão.

era um coração. já era nato: rei de nada.
já de pé, pó de estrada. era nem ontem, nem amanhã...

hoje sôo.

Quem sou eu

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Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.