terça-feira, fevereiro 28, 2006

a virgem

quando a virgem estendeu-me sua língua de éter
pus-me à míngua, notário subitamente reduzido
a dicionário, cuja pena murcha estrebucha
a cuspir sua tinta em garrancho precário.

a virgem estirou-me sua página branca
na penumbra, sem de todo revelar-se, neófita.
eu, nu a fitar-lhe as brandas ancas sem pátina,
medindo sua nudez mais ancha à medida
em que avançava-me a febre ignorante.

foi então que, diante da iminência do golpe,
eu surdo em meu machado arfante, ela deu-se
a saber, intocada, qual hora doravante.
eunuco, a carne bêbada, um dessemelhante,
pôs-me Minotauro vencido a murro ou espada,
ária de nenhum canto, espanto costurado a fio,
prisioneiro em dédalo sombrio, estremeci.

quando a virgem entendeu-me assim, sorvi
seu ungüento, em pequenas doses, que ela
trazia-me, diligente, à boca, em cautela.
a negra donzela lambeu seu espelho, que
dissolveu-se, vermelho, em sangue futuro.

terça-feira, fevereiro 14, 2006

sobre a certeza

esculpe tua certeza
como um anjo sobre o sepulcro
evita o maneirismo e a soberba
espera diante do sol nascente
as verdades indizíveis
caminharem sobre os montes
em direção ao teu olho desperto
abandona esse teu desespero em saber
à sua própria sorte:
não queiras saber coisa alguma

acalanta o sono de teu filho
apenas com o silêncio
percebe que tua linhagem transborda já de ti,
para além da existência de teus descendentes

faze de tua obra carne e sangue a pulsar.

conhece os homens ao teu redor
e oferece a cada um, um brinde:
algo para a sede e a fome
algo para o ócio, e o abandono
conhece os caminhos largos de teu sono
observa os teus amigos imateriais,
e deles aceita o tributo e o conselho
esforça-te em tua memória para que
o ouro baço não se transmute no pó da vigília

percebe que a vida ao redor de ti
diz apenas: sim
mesmo com o pranto e a perda lacônica
mesmo com pequenos animais sucumbindo
a cada passo teu -

a cegueira é saturação, nunca ausência.

rejubila-te com um espaço vazio
alegra-te, finalmente, com a certeza do nada
donde tudo há de recrudescer.

Quem sou eu

Minha foto
Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.