segunda-feira, setembro 19, 2005

morada
costuro a linha delgada de um corpo,
cosendo entre os dedos a invenção da vereda.
há varandas donde sobe-se à ventura de
vestir-se, num balanço que pulsa em flancos,
da altura do que podem as mãos e o olfato.

delineio um corpo denso e leve, com miríades de
espaços, microcaves onde abrigo os farelos
da semente, entre dentes que não rangem.
ouço a sede dos estreitos, leio a curva dos
esgarços mergulhados em estrelas que, já
mortas, deixam lá sua lâmina clara.

este corpo, imensado na fazenda lívida do que
engendro em mãos fabris, resolve ser
um prado, um mínimo arbusto, um busto mineral,
peito líquido de onda marinha, sarça que
baila e arde, marfim e óxido da tarde sobre
os olhos meus que descansam pardos.

sei que tardo em ter-te, sombra morada.
a vela que bruxuleia sobre o caminho que
leva ao nome, é o que indicia o vento, a
fome do ar que o fogo tem.

corpo que em vento desfaz-se, veloz campanário
reduz-se a cetim imaginário, fantasma que aperta
à roda o pulso... e lateja. veja que não medro,
à guisa de ciranda, habitar-te clandestino, até
que a estopa bêbada do desatino me lance,
flambada, à morada de asa : :

domingo, setembro 11, 2005

Fui assistir ao novo espetáculo da Cia Moderno de Dança sobre a ditadura militar no Brasil. Imagens impressionantes em música poderosa de Chico Buarque... Entre mortas e feridas sensações, perseguiu-me esta frase inicial de "Bom Conselho", que me fez acordar nesta madrugada de 11 de setembro (coincidência?), com motes girando em minha tonta e sonolenta cabeça... onde... está... meu... caderno...?...


Ouvindo Chico ou O Não Dito

inútil dormir, que a dor não passa.
inútil sonhar, que a cor não grassa.
inútil viver, que o fim não rasa.
inútil rezar, que deus não erra.

inútil errar, que o vento encerra.
inútil cerzir, que o fio esgarça.
inútil gostar, que o medo emperra.
inútil empurrar, que a fila é dupla.

inútil driblar, que o jogo é ganho.
inútil falar, que o som não cessa.
inútil saber, que a lei não sobra.
inútil cobrar, que o jugo aperta.

inútil lembrar, que a vista cansa.
inútil alcançar, que a meta é farsa.
inútil afastar, que a força é bruta.
inútil lutar, que a guerra é santa.

segunda-feira, setembro 05, 2005

fio de sangue

desfiz o fio de sangue que me deste
e que trazia atado ao pulso destro
mas sem despir, contudo, o que me veste
o agasalho morno do que sinto

longe de ti, no fundo labirinto
deponho a sanha rija que consome
e ao pé de mim, sei bem o que não minto:
a fome, a fé, a faca, o fogo claro

seguro nas mãos o segredo raro -
um punhado de relva corriqueira
escondo em aparente desamparo
a inteireza materna da terra

meu pulso nu, que a nada mais se aferra
meu coração, estampido vermelho
lutando anônimo em perdida guerra
o espelho insistindo no que existe

...e eis que o fio de sangue 'inda resiste.

Quem sou eu

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Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.