terça-feira, julho 26, 2005

dia

contas ao tempo o teu secreto viço, e ele abriga-o, as mãos em concha. 

fazes de teu caminho costumeiro a vestimenta devoluta dos novos olhos, 

e assim tens o sorriso de um camponês, eivado de lírios brancos. 

repetes ao silêncio teu voto primeiro da clara sentença, 

e tua boca transborda de francas palavras, como mel em favos incontinentes. 

embebes a semente de tua mais líquida esperança, e então 

esqueces a erupção da flora, inevitável, relevo na relva murmurando sob teus pés. 

riscas ao passo doido, na avenida transida de ventos chuvosos, 

a tua escuridão repleta de folhas que caem, e o rumor 

da tua solidão embala as gotas perdidas pelas valetas. 

 emprestas tuas lágrimas às canções antigas que ouves, distraída, 

e enfim, como lentas estrelas moles de luz percorrida, deitas tua cabeça ao sonho.

sexta-feira, julho 22, 2005

Amarcord

faço versos como quem lambe
a delicada lâmina afiada
sobre o doce dorso da língua.

faço versos como quem míngua
na escuridão da casa vazia
donde a fera voraz se nutre.

faço versos como quem supre
a si mesmo, sob imensa febre,
sob o credo de tal choque.

faço versos como quem sopre
a brasa moribunda do fogo,
à fervura branda do sangue.

faço versos como quem, lânguido,
inconsciente, empalidece,
a delirar numa prece dúbia.

faço versos como quem nubla
a visão do caminho à sorte,
transfigurando a morte em lenda.

eu faço versos como quem lembra.

segunda-feira, julho 18, 2005

Ao coração fundo do oceano

queres escrever?
toma de tua lira, ou de tua ira,
mas ergue tua cabeça ao sonho
suave ou medonho que te cabe.

cava com tua coragem
e tuas próprias mãos
a câmara secreta que conduz
ao coração fundo do oceano.

observa, sem plano,
a densa fala do ultramar...
permite ensurdecerem-te as águas,
algas de algures,
álgebras do alagamento pleno.

esquece tua fabulária necessidade
do oxigênio, inflando teus pulmões
das abluções, das mágicas poções
em segredo translúcido das medusas...

abre-te, solícito, às musas da lentidão
e percebe, na tontura lívida do mergulho
que a pedra do teu orgulho pende ainda
em teu pescoço moço de poeta novo.

quinta-feira, julho 14, 2005

verve

em mim vive a verve a revirar-me, reverso...
vivo imerso no que, em mim, é miríade.
imolado, eivado de ventos que me viciam
na vertigem, na voragem de um doce abismo...

a folha seca

não vou te infligir o golpe de nenhuma culpa
se acaso a desculpa se abater, inevitável.
vou evitar a cicuta, a desordem sem escuta,
todo líquido inflamável.
vou sorvendo gota a gota a pergunta
silenciosa do teu ser inquestionável,
e assentir à sina rota, e à rota insegura do inefável.

não se aflija se me calo ao calor do que acontece.
só quem desce do seu salto sabe o calo que lhe cresce
e aparece assim sem mais, como relevo importuno.
sou tão vago, um gatuno, presa fácil da incerteza,
volta e meia vontade pisando em corda bamba,
um caixeiro viajante da mutreta e da muamba,
sou do rock, eu sou o samba, buginganga,
jóia rara que se dispara em bodoque.

se te incomodar o toque feito em verso de poema,
abandono meu esquema, queimo meus papéis no vento.
ainda restará o alento da fuligem espalhada,
escrita carbonizada que me dirá ao relento,
ao restolho mineral tornado de novo terra,
nutrindo de novo a fera vegetal que recrudesce,
incontinente, na prece erguida em verde folha.

haverá esta escolha de sentar-se à sua sombra
em dia de sol intenso.
não te espanta se o imenso resumir-se em folha seca
repousada em teu colo: minha cabeça
meus olhos, meu coração, o que penso
pousam breves, sem tormento, para guardares, ou não.

terça-feira, julho 12, 2005

A poesia começa

a poesia começa
no avesso:
não é comício
não é enxerto.

a poesia desconfia
do comércio:
não há preço
onde há verso.

Nu vem

secretas mansidões, adivinho
mansões do inverso ninho, sobrevôo
cordas plangidas na inconstância,
e tamanho silêncio submerso em meus braços.

tento a curva segura, dispersa
em vozes que confessam a fundura,
enumeram as origens sem pudor,
sob o frágil olor de um cálice de vinho.

secretas mansidões, advenho
donde o cenho cala-se resoluto.
envergo as sombras, nítido,
enganando entre tímido e evidente.

Imaginária

clareira à margem da nau precária
vaginação do olho
plenária percepção

inventário memorabilia
olhar que orvalha
ouro que avalia
válido chão

ímã grave, idade vária
gen primevo, planta virgem
desencaixe da palavra
pela lavra da miragem

imagem: ária-fuligem
da opereta visionária
soprando escuros sobre a nau precária
bêbada imaginação.

Quem sou eu

Minha foto
Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.